sexta-feira, 20 de maio de 2016

Parto-me (2)


22.05.2014, 21h08min, no meio de uma contração
Parto-me parte 2 não está fácil de sair. Revisito as fotos, os vídeos, ouço as músicas e cada vez que faço isso
sentimentos novos vem surgindo. Sentimentos do antes, do durante, do agora. Sensações que me invadem, me tiram sorrisos e lágrimas.
Eu sinto como se, sinto como se em 2 anos e 9 meses eu tivesse aprendido mais que em 30 anos de vida. Sinto como se eu tivesse começado a me conhecer.


É um desejo de voltar lá atrás, voltar e fazer tudo de novo, diferente, usando tudo o que eu aprendi desde lá. Mas eu sei, também que, tudo que acontece é aprendizagem. A Vanessa que estava lá é semente da Vanessa de hoje. A Vanessa que estava lá fez o tinha condições de fazer. E viveu o que precisava para aprender vai sobre a própria vida.

Mas, enfim. 22 de maio de 2014, fim de tarde, por volta das 16h30, uns minutos a mais. A bolsa rompeu. Líquido escorrendo perna abaixo. Eu nem sabia ainda se poderia parir em casa, ou teria de ir para o hospital. A coleta de 24 horas de xixi tinha ido para o laboratório pela manhã e eu aguardava o resultado.

Pai do Estevan saía do trabalho as 17h. Pedi que passasse no laboratório para pegar o resultado. Era importante tê-los em mãos. Entrei em contato com a parteira, encaminhei resultado dos exames por e-mail para o obstetra. Tudo certo com os exames. Que alívio. Ou não. Eu tenho  a sensação de que naquele momento eu já não sabia mais se todo aquele movimento era bom mesmo, e se não desse certo? Vamos lá, o corpo sabe parir! Eu tinha certeza de que parir seria libertador, transformador! Uma transformação acontecida no instante do parto. Eu certamente não imaginava que o parto de uma nova mulher seria tão longo, dolorido e bonito.

A Doula. Ela está viajando, mas fizemos contato anterior com outra pessoa. Outra Doula. Se fosse preciso ela nos acompanharia. Um encontro. Eu fiquei um pouco envergonhada de fazer contato com ela. Devíamos ter conversado mais. Nos encontrado mais. Ela já conhecia o restante da equipe, isso me tranquilizava, já haviam trabalhado juntos. Mas e a minha intimidade com ela? Eu não pensei nisso. Eu queria parir. O corpo sabe parir!

Organizamos a casa. Aquecedores no corredor e banheiro. Descobri que esses aquecedores pequenos não servem de nada. Fazem um vento quente ótimo para secar banheiro em dia de umidade, mas como aquecedores de ambiente? Um desastre. Ou seria o frio intenso que fazia e minha variação de temperatura?

Pode ir para o chuveiro. Fica um tempo lá. 1 hora. Se as contrações continuarem é trabalho de parto. Se pararem. Alarme falso. Eu fui. E aquela hora não passava nunca. Sabe quando as mães gritam "desliga esse chuveiro, á faz 1 hora que tá nesse banho!". Elas nunca olharam no relógio. 1 hora embaixo do chuveiro é muito tempo. Muito tempo mesmo. Mesmo com o banquinho para sentar.

Era um dia frio. Bem frio. O banho precisava ser quente. Além da pouca eficiência dos aquecedores, a chave (disjuntor) do chuveiro também caía. Alguns minutos de banho bem quente e alguém precisava religar a chave. Que saco. Interrompia. Atrapalhava. Que vergonha. Nem o chuveiro não funciona direito.

Eu me preocupei bastante com o que precisava para parir em casa. Acho que faltou pensar no que eu queria para parir em casa. A primeira coisa é sim importante. A infraestrutura. Mas, e os meus desejos? E a conexão com o corpo, com o bebê?

É um momento íntimo. Não é bom muitas pessoas por perto. Mas se é para nascer em casa é para nascer com as pessoas que vivem na casa, não? Eu queria que meu irmão estivesse junto. O pai da criança também, claro! Mas queria também que Mateus estivesse com a gente . Mas, não pode muita gente. Acatei. Não ouvi o meu desejo. Acatei.

Iuri fez risoto. Comprou algumas coisas para comer. Ficamos em casa, os três. Conversando. Anotando contrações. Todas. Sem perder nenhuma. Dançamos? Não, eu esqueci de dançar na gestação. E as músicas. Eu estava fazendo seleção de músicas. Salvando no notebook, vai que a internet não funcionasse, eu teria as músicas salvas para ouvir. Mas, uns dias antes, notebook estragou. Ainda deu tempo de salvas algumas numa lista do youtube. Algumas. Poucas. Não exatamente as que eu queria. E elas repetiam a todo instante. Repetiam desesperadamente.

Entre uma contração e outra, a gente dormia um pouquinho. Eu tenho uma habilidade incrível para dormir. Assistindo aos vídeos pude conferir o comentário do Iuri sobre isso.

As contrações e as dores aumentavam. Já passava da meia noite. Chamamos a Doula. Eu não lembro quando ela chegou.  E lembro menos ainda quando o resto da equipe chegou.

Quem sabe vamos caminhar, sair do quarto? Não! Eu não conseguia. Talvez tenha ido até a cozinha alguma fez. Mas a imagem que eu tenho era de ir até um pedaço do corredor e voltar. Não, eu não queria sair dali. Eu não conseguia. Massagens, florais, banho (quente-frio), bola. Rebola. Mexe os quadris. Inspira. Solta o ar pelo canal da vagina.

A gente tava na cama. A Cibele nas minhas costas, massageando. Foi um momento intenso. Na minha memória registrado como "vamos lá, tu vai conseguir". Cibele tinha lindas palavras de incentivo. E eu ali, com minha dificuldade de acreditar em elogios.

Conecta com o bebê, pode chorar. Fala tudo que está sentindo. Pode gritar. Vocaliza. E se teve uma coisa que que fiz foi gritar, gritei por todos os silenciamentos da vida. Gritei por todas as vezes que calei. Que acatei.
23.05.2014, 13h06. 
Pode falar o que tu sente, o que tu tem vontade. Chama teu filho para o mundo. E eu chamei, mas era estranho. Pedi desculpas por não aceitá-lo. Pedi desculpas ao pai dele por não ter contado antes. Mas não consegui falar de amor. A frase veio, tocou na minha garganta, mas eu não consegui falar. Eu engoli. Mãe eu te amo. Eu não consegui.

Em algum momento tudo parecia tão artificial. Tem alguma coisa trancando. Não vai descer, tá trancado. Nem mesmo o ar, inspira, solta o ar pelo canal da vagina, nem mesmo o ar imaginário passava ali. Eu não consegui bem dizer o que era, mas falei que trancava. Coloquei a mão no ventre e dizia: aqui, está trancado,  tem alguma coisa trancando, não vai passar.

Muitas horas já deviam ter passado. Eu me sentia exausta. E se eu dormisse só um pouquinho, será que eu conseguiria?

Os exames de toque doíam insuportavelmente. Estávamos bem. Pressão, temperatura, batimentos cardíacos. Mas as contrações começaram a espaçar. Começaram a enfraquecer. Quase 24 horas de trabalho de parto. Eu acho. 7 cm de dilatação. Eu acho. O bebê está muito alto. Ele precisa descer e girar. As contrações estão fracas. Não vão conseguir empurrá-lo.  É melhor ir para o hospital, quem sabe com a ocitocina sintética as contrações retomem e o trabalho de parto avance.

O plano B era o hospital centenário. A equipe me acompanhava até, mas não teriam como entrar. A bolsa no menino estava mais ou menos arrumada. A minha, nada arrumada. Eu ia parir em casa. Parto domiciliar planejado. Nada das minhas roupas me serviam mais. Fazia muito frio. Peguei o que restava de roupa limpa e que ainda servia.

Iuri ajudou a descer as escadas. Via luz do dia. Mas não vi as pessoas que andavam pela rua. Era sexta-feira, 23 de maio de 2014, por volta das 16h.  Fui no banco de tras, de joelhos. Recebendo as contrações. No hospital, na sala de pré parto ninguém entra. Tendei que a Doula entrasse junto. Não. Não pode. Quando for para a sala de parto chamamos uma pessoa.

A ocitocina sintética entrou e as dores aumentaram. Aumentaram muito. Não tinha posição confortável. Na verdade, só tinha uma posição: deitada! Obedeci. Obedeci, também, por medo de ser maltratada. Que tristeza, em momento de dar a luz precisar passar por isso. Precisar passar pelo medo de ser maltratada. As contrações vinham e eu gritava. Vocalizava. Mas não consegui me mexer, me sentir confortável. Os exames de toque continuavam imensamente doloridos.

A dilatação completou. Mas o bebê continua alto. Um médico olha, chama outro. O que fazer? Se aproximava da hora de troca de plantão, depois me dei conta. Como iam trocar plantão e deixar uma mulher ali, em trabalho de parto.

Vamos fazer cesárea. Tudo o que eu não queria. Cesárea. E eu ainda choro por ela. Choro agora. Na hora não. Não sabia mais dos meus sentimentos. Só sabia de dor e exaustão. Chamem o pai da criança. Ele tem direito! Eu tenho direito. Foi a única reivindicação que eu consegui fazer. Contra o anestesista que me dizia para não gritar, eu só consegui responder com um grito. Mas devo admitir, naquele momento, aquele líquido agindo no meu corpo foi uma sensação ímpar.

Na cirurgia, eu me sentia como um saco de batatas que é empurrado, balançado para todos os lados. Pedi que tirassem o pano na da minha frente. Que queria ver. Não. Não podemos tirar.

Eu fiquei ali, esperando sentir tirarem o bebê da minha barriga. Eles iam tirar e me mostrar. Óbvio né? E puxa de um lado e do outro. E nunca tiravam bebê. A minha esquerda, numa mesinha, tinha um bebê, não era o meu filho, eu não senti tirarem ninguém da minha barriga. Eu não sei de quem eu pensei que fosse aquele bebê. Não tinha outra mãe passando por cirurgia ali comigo. Mas eu não achei que fosse o Nosso Menino. Na minha direita, Cristofer conversava. Dali um momento me falou, como quem quer dizer, mas não quer assustar.  Ali, do lado, nosso filho. Nosso filho? A enfermeira (ou sei lá quem era ela) explicou que ele demorou um pouco para respirar. Mas estava tudo bem. É normal em função do hormônio sintético e da anestesia (e dele ter nascido pela barriga e de ter o cordão umbilical cortado rapidamente). Qual o nome dele? A gente olhou, se olhou. Estevan. Eu ainda brinquei, Estevan Leopoldo. Era sexta-feira, 23 de maio de 2014. 18 horas e 55 minutos.

E toda a paixão que eu parecia não ter sentido naquele momento de exaustão, de hormônios sintéticos, de anestesia, eu sinto agora, ao escrever.  Revisitando a memória, eu sinto como cada pessoa que se envolveu no nosso trabalho de parto se dedicou na forma que pode, na forma que sabia naquele momento, deu de si tudo o que tinha para dar.

Cris, vai com o Estevan. Eu fiquei ali sendo costurada. Depois sala de recuperação. Precisa levantar o quadril e as pernas para receber o bebê. Vai demorar umas quatro horas. Eu estava exausta. Vou dormir para me recuperar e receber o filho. Posso trazer ele? Sim! Sim! Traz! Tu consegue segurar ele? Teve um silêncio, vácuo. Não são sei quanto milésimos de segundo durou. Sei que eu não consegui pensar se não conseguiria. Eu daria um jeito. Traz! Traz o meu filho!

Eu queria parir. Estevan não nasceu de parto normal. Mas, desde lá, venho parindo uma nova mulher! 



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Nesses dias de escrita sobre trabalho de parto escutei e cantei muitas vezes essa música da Bruna Caran, Nascer de novo. É como se ela tivesse sido escrita para mim, para minha experiência de maternidade.


É como se o tempo que eu levei
pra saber tudo o que sei
provasse eu não saber nada.

Por todo o caminho que andei
pra cada passo que dei
voltar ao início da estrada.

E desfazendo cada defeito
desvendando um jeito
desenhando a saída.

Que é pra viagem
ser só de ida,
mas sem haver despedida.

Te ter é como nascer de novo
não reconhecer nada ao redor
desatar o nó, quebrar a casca do ovo
a dura carapaça da dor.

Por tudo aquilo que já pequei
e cada ato que errei
é como estar perdoada.

E livre do que então carreguei
cada cilada em que entrei
de cada porta fechada.

Viver trilhando o caminho certo
é olhar mais de perto
o universo em mim.

Que é pra poder seguir adiante
não me sentir mais distante.

Te ter é como nascer de novo
não reconhecer nada ao redor
desatar o nó, quebrar a casca do ovo
a dura carapaça da dor.

Tenha paciência comigo
Saiba que ainda estou
Sem ver onde piso, é repentino e sem aviso
A terra perdida à pele, a paixão ardida…

Te ter é como nascer de novo
celebra o que em mim é maior
minha nova instância: descobrir a todo instante

cada nuance do que é o amor.

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