O texto de hoje
quase não saiu. Não sei se vai sair. Voltamos do passeio da tarde. Mamain...
Mamain... Mamain... Alguém pode dar atenção para esse menino uns 5 minutinhos
pra eu arrumar a janta? Ah, não tem ninguém. É, somos só nós dois. Mamain...
Mamain... Mamain... Numa exigência de atenção que me fez retomar a leitura no
livro da Ligia e da Andreia, sobre disciplina positiva e educação não violenta:Educar sem violência: criando filhos sem palmada. Duas páginas. Mamain...
Mamain...
Olho para o tanto
que aprendi até aqui e me assusta o quanto
ainda devo aprender. Mudar. Melhorar.
Estava
desistindo do texto quando encontrei partilha da Genifer Gerhardt. "Hoje vejo calendário de lua, entendo
tristeza como tristeza, e só". Foi um acalanto para minha alma.
Criança dormiu.
Levantei para escrever. Inhééé... Mamain... Estou fazendo o exercício de cada
dia usar menos o celular perto dele. Mas se quero texto, não vai ter jeito.
Amamentar digitando. Ele mamou, dormiu, se aninhou encostado em mim.
O tema é difícil.
Pesado. Pode ser isso também, pensei agora. Gravidez indesejada. Nenhuma mulher
é obrigada a ser mãe. Trazer à memória um momento tão tenso pode estar nos
rodeando de energia mais densa. Mas é parte da vida. Não carrego culpas.
Entendo como dor que precisou ser vivida. Superada.
Eu fiquei em pânico.
Acabei com a minha vida e com a vida do pai do Estevan. Pensava eu. Sabia que a
vida não era das mais fáceis para ele. Estraguei tudo. Carregava culpa daquela
gravidez. Na minha cabeça não existia o "nós tínhamos engravidado".
Não. Eu tinha engravidado. Que merda eu tinha feito.
Fala com a fulana,
consegue o contato de uma clínica de aborto. Certamente ela tem.
Eu não podia fazer o
contato. E se não desse certo, e se barriga crescesse? Ela ia saber que era
para mim. Que tentei abortar e agora estava ali, carregando uma barriga que eu
não queria carregar.
Chá de canela é
abortivo, lembrei eu. Pesquisa no Google. Chá disso. Daquilo. Daquele outro.
Canela e alecrim. A casa fedia a chá. Não tomei o chá de arruda. Não achei. Não
quis achar? Pode ser. Hoje vejo grávida evitando saquinho de chá de maçã com
canela. É abortivo. Eu dou risada. Abortivo. Aham, super abortivo, cuidado!
O endereço da
clínica. Mudou. Está do outro lado do estado. Minha nossa. Do outro lado? É
muito longe. E se eu passo mal? E que desculpa eu vou dar para viajar até lá?
Mais um pedaço de mim morria. Minha chance se foi. E agora?
Descia escadas de
olhos fechados. Atravessava a rua sem olhar para os lados. Jogava vôlei
procurando uma caída feia. E nada. Um número significativo de gestações não
ultrapassam os três meses. Eu desejava estar nesse grupo.
Eu não queria estar
grávida. Sai da minha barriga. Sai daí. Mas ao mesmo tempo em que procurava
meios de me livrar dela, abandonava aos poucos os hábitos menos saudáveis.
Cervejas e cigarros.
Em outra conversa.
Ciclana encontrou uma clínica de aborto. É mesmo? Que bom. E onde é? Perguntei
como quem nada queria. Guardei endereço na memória e depois no papel. Fui lá
uma, duas, três vezes. Nem sinal de que houvesse algo funcionando ali. Andei pelas
ruas de Porto Alegre procurando placas, com códigos indicando locais que fazem
aborto. Ruas sujas. Sombrias. Lugares feios. Não encontrei. Se tivesse
encontrado entraria? Não sei. Eu não sei.
E remédio? Por que
não toma um remédio? E se não dá certo? E se eu morro? E se criança fica com
problema. Eu não queria estar grávida. Mas também não queria que criança
tivesse problemas. E cada dia diminuía o cigarro e a cerveja.
Diminuía a vida em
mim também. Não conseguia dormir a noite. Morria de sono de dia. Comia. Dormia.
Chorava. O mundo era cinzento. Comia. Dormia. Chorava. Foram três meses assim.
Foram 10 quilos a mais. Comia. Dormia. Chorava.
Não conseguia olhar
uma grávida na rua. Tinha vontade de chutar a barriga até desmanchar. Uma
colega e amiga grávida. O assunto na sala dos professores, muitas vezes, era
esse. Eu não conseguia ouvir a voz daquelas pessoas. Certo dia ouço a pérola:
Hoje em dia só engravida quem quer. Eu
não lembro a minha resposta. Eu olhei, respondi alguma coisa. O que eu queria
na verdade? Dizer que elas não sabiam de nada, que eu estava grávida e não
tinha sido falta de cuidado. E não era por que eu queria.
O buraco só parecia
aumentar. Tio no hospital. Prima também. Mãe com suspeita de doença grave e sem
querer fazer tratamento. Deixa ela, eu pensava. Deixa ela. Ela tem direito de
decidir. Ela também escondeu da gente a suspeita de doença grave. As tias que
contaram. Tenho esperanças de que um dia aprendamos a contar uns aos outros
sobre as dores e as alegrias da nossa alma. Do nosso corpo.
Nesse tempo, posei
uma noite no hospital cuidando do tio. Dormi num colchão no chão. A cabeça e as
energias todas concentradas no útero. O tio chamou. Levantei depressa. O mundo
deu meia volta. Caímos os dois. Só lembro quando eu já estava em pé. Que pânico.
Vão querer me examinar. Vão descobrir que estou grávida. Ufa! Um copo de água.
Só! No outro dia tio contou que eu caí de amores por ele.
Nesse tempo, acabei
encontrando de novo com o pai do Estevan. Eu sempre fugia, mas esse dia foi
meio inevitável. Ele estava sem chave. Tá, vamos lá em casa então. Ops... Sexo
sem camisinha não dá, e se a gente engravida? A gente aborta. Ele também era favorável
ao aborto. Foi a minha leitura. Depois, com o tempo, entendi como frase solta,
sobre possibilidade remota. Não era frase pensada sobre fato real. Eu carregava
a gravidez como problema meu a resolver, não conseguia ver como situação nossa.
Contar pra que? Pra mais gente saber de ato ilícito que quero cometer?
E a clínica? Aquela
clínica do outro lado do estado. Quero o endereço. Pede pra mim. Eu vou. Vou sozinha. se passar mal depois, chamo alguém pra me buscar. Eu tinha a
informação de que até 12 semanas era mais tranquilo o procedimento. Também
tinha a informação de que precisava de uma ecografia contando as semanas de
gestação. Enquanto vem o endereço, vou
fazer o exame. Pelas minhas contas eram 8 semanas. Eu tinha ainda 4 semanas
pela frente para resolver o problema.
Eu, a cada dia
falava menos com as pessoas. Inclusive com aquelas que sabiam do
"problema". Eram três. Mais aquelas que ficaram sabendo. Não era
fofoca, eu sei. Era rede de apoio. Uma informação dessas é pesado processar
sozinho, mas quando fiquei sabendo, fiquei magoada. Hoje entendo.
Marquei exame. Era
algum dos 10 primeiros dias de novembro. Fui fazer. Era quarta-feira eu acho.
De manhã. Pum pum pum pum pum pum pum pum pum pum pum... Muito rápido. Sem
pausa. Pum pum pum pum pum pum pum pum pum pum pum pum. Era agressivo. Pum pum
pum pum pum pum pum pum pum pum pum... Senti
vontade de levantar da cama e quebrar tudo. Pum pum pum pum pum pum pum
pum pum pum pum... Era um barulho ensurdecedor. Pum pum pum pum pum pum pum pum
pum pum pum... Eu não conseguia olhar no
monitor. E eu choro agora, pensado na dor e na boniteza solitárias que existam
ali. A boniteza solitária daquela vida, que insistia em crescer. A minha dor
solitária, que não sabia como reagir.
10 semanas. O que?
10 semanas! Não pode. Nos meus cálculos são 8. É que conta desde a última
menstruação. São 10 semanas. No início é mais preciso o cálculo. Tu não queria?
Não. Pois é, esperou demais para resolver.
A fala do médico foi
uma pedra gigante em cima de mim. Sai dali com a certeza de que o mundo tinha
acabado. Sai dali sem ânimo de erguer os braços. De olhar pra frente. 10
semanas. Eu sou tão incompetente que não consegui nem abortar.
Minha última
esperança era um aborto espontâneo. Tanta gente que se cuida e aborta. Eu bem
posso estar nesse grupo. Eu não queria estar grávida. Mas o cigarro e a cerveja
já não existiam na minha vida. Quer dizer, quase não existiam, porque as vezes
não tinha como negar. Não, não vou tomar. É que to grávida. Quero abortar, mas
se eu não conseguir, to me cuidando né! Já pensou, linda resposta né?
Eu, desde algum
tempo, defendo a legalização do aborto.
Legalizar o aborto não é o mesmo que ser favorável ao aborto. Eu não sou
favorável ao aborto. Na verdade, eu não era. Até passar por essa experiência.
Quer dizer. Hoje eu sou muito mais favorável a descriminalização do aborto do
que era antes.
Uma gravidez não
planejada me colocou numa situação de desespero imenso. Me colocou no olho do
furacão. E quem consegue analisar, sentir, decidir com consciência quando está
no vértice da coisa?
Aborto é crime. É
feio. É pecado. É repugnante. Irresponsável. Sujo. Mas, mais irresponsável que
tudo isso é a criminalização do aborto. Uma mulher grávida, que não quer estar
grávida, não vai procurar pessoas para se aconselhar, pessoas que possam apoiá-la
para realizar esse procedimento. Uma mulher grávida e desesperada vai procurar
alguém que possa resolver o problema dela da forma mais discreta possível.
Que triste que as
coisas sejam assim. Não há como interromper uma gravidez de forma discreta.
Como se nada tivesse acontecido. Não dá
pra tirar uma vida da barriga como quem tira espinho do pé. Mas abortar é
crime. E se é crime eu tenho que fazer escondido. Eu tenho que fazer sem apoio.
Sem abraço. Sem cuidado. Me dói saber que amigas tão próximas tenham passado
por isso, sem meu apoio. Sem meu abraço. Talvez eu não tivesse condições, na
época, de abraçá-las. Dói saber disso também. Do preconceito que a gente
carrega e só desmancha depois. Depois que vive o desespero. A dor. Que se sente
morrendo sem saber o que fazer.
Legalizar o aborto
não é só dar à mulher o direito de decidir sobre o próprio corpo. É autorizá-la
a pedir ajuda. É criar uma rede de escuta antes de sugar uma vida que começa a
se instalar no seu útero. É abraçar a mulher grávida e desesperada e ajudá-la a
visualizar possibilidades e, se a única possibilidade que ela conseguir
visualizar for essa, que sua vontade seja respeitada, porque nenhuma mulher é
obrigada a ser mãe.
Eu tenho certeza de
que, se eu me sentisse autorizada a pedir ajuda, eu teria desistido da ideia do
aborto muito antes. Eu não teria sofrido sozinha (sozinha sim, porque apesar de
algumas pessoas saberem, eu evitava falar com elas) por aproximadamente três
meses.
Eu fiquei tão
desesperada que as poucas vezes que pensei em pensar na possibilidade de olhar
para a minha barriga e para a vida que crescia ali eu desisti. Eu não quero. Eu
não vou conseguir cuidar de uma criança. Eu não sou obrigada a ser mãe.
Os dias foram
passando... Passando... Já não tinha mais tempo de aborto seguro. Já não tinha
mais esperança de aborto espontâneo. Eu vou ter um filho por incompetência. Por
não ter conseguido abortar. Esse era o sentimento. A tristeza parecia aumentar.
Até que, em algum dia da primeira metade de dezembro eu percebi que se
continuasse daquele jeito ia acabar precisando de um psiquiatra. De um monte de
remédios e remédios não fariam bem para o bebê. Porque eu não queria ser mãe,
mas já não bebia e fumava mais.
Eu levantei da cama.
Parei na frente do espelho. Me olhei. Olhei para dentro de mim, pela primeira
vez. Olhei para a vida que crescia ali. Coloquei as mãos na barriga. A primeira
vez, a primeira fala. Nós vamos começar a conversar, mas sem essa história de
crescer e vir me falar que não pediu para nascer.
Pós
texto: procurando o link do livro que citei no início da escrita, encontrei
esse texto: SER MÃE OUNÃO SER MÃE? - REFLEXÕES SOBRE ABORTO, MATERNIDADE, SAÚDE, ANTICONCEPCIONAIS EDIREITOS. Indico a leitura.
Indico inclusive que acompanhem Cientista que virou mãe.
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